Caros alunos de processo civil da UnB,
Considerando a provocação de uma colega acerca da penhorabilidade do bem de família do fiador na locação, farei um pequeno apanhado do assunto. Dividirei o tema em três pontos, para organizar o raciocínio. E, claro, buscarei escrever da forma mais clara possível, sem preocupações formais.
- A previsão legal e sua razão de ser
Sabe-se que o imóvel residencial da família (família aqui não em sentido clássico, mas no de “famílias”) é impenhorável, por expressa previsão legal, contida no art. 1º da Lei 8.009/90, que “dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família”. Eis a dicção legal:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Ocorre que a própria lei traz exceções à regra da impenhorabilidade, conforme se observa do art. 3º:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III - pelo credor de pensão alimentícia;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
Pois bem. Observem que o inciso VII foi incluído pela Lei 8.245/91, conhecida como “Lei do Inquilinato”. A redação original da Lei 8.09/90 não previa tal hipótese. Tivemos, portanto, uma inovação feita pela lei do inquilinato, precisamente pelo seu art. 82.
O legislador protegeu o imóvel residencial da família, não importando o valor do bem. Desde uma pequena casa até uma luxuosa mansão de valor milionário, todas estão protegidas legalmente pela lei 8.009/90. Aqui há um ponto controvertido digno de nota...
A doutrina vem há muito tempo criticando essa impenhorabilidade “ilimitada”, que gera, em casos específicos, uma notória injustiça. Pensemos na seguinte situação: um cidadão deve a um antigo empregado (que não se enquadre no inciso I do art. 3º da Lei 8.009/92, acima transcrito) dívida trabalhista, de natureza alimentícia, portanto, no valor de 15 mil reais. E esse valor, para o pobre trabalhador, é extremamente relevante, naturalmente. Ocorre que o devedor não dispõe de nenhum patrimônio penhorável. Vive de um salário de 50 mil reais mensais e mora numa mansão avaliada em 3 milhões. O que pode fazer o credor?
Lamentar... somente lamentar!
Isso porque o imóvel residencial é “bem de família” e o salário é também impenhorável. Esse tipo de situação, de flagrante injustiça, vem sendo combatido e criticado no Brasil, pela doutrina, há tempos. Em 2006 o Congresso Nacional aprovou a lei 11.382/06 em atenção a tais críticas, prevendo expressamente a penhora de salários e do imóvel residencial de alto valor. Mas atenção, os artigos referentes à matéria foram vetados pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva.
Vejamos, inicialmente, o que previa o texto legal aprovado pelo Congresso e vetado pelo Presidente da República:
“§ 3o Na hipótese do inciso IV do caput deste artigo, será considerado penhorável até 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmente acima de 20 (vinte) salários mínimos, calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios.”
“Parágrafo único. Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a 1000 (mil) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade.”
É interessante ler as razões do veto:
A proposta parece razoável porque é difícil defender que um rendimento líquido de vinte vezes o salário mínimo vigente no País seja considerado como integralmente de natureza alimentar. Contudo, pode ser contraposto que a tradição jurídica brasileira é no sentido da impenhorabilidade, absoluta e ilimitada, de remuneração. Dentro desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão volte a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.
Na mesma linha, o Projeto de Lei quebrou o dogma da impenhorabilidade absoluta do bem de família, ao permitir que seja alienado o de valor superior a mil salários mínimos, ‘caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade’. Apesar de razoável, a proposta quebra a tradição surgida com a Lei no 8.009, de 1990, que ‘dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família’, no sentido da impenhorabilidade do bem de família independentemente do valor. Novamente, avaliou-se que o vulto da controvérsia em torno da matéria torna conveniente a reabertura do debate a respeito mediante o veto ao dispositivo.
Nesse contexto, não há dúvidas de que permanece a impenhorabilidade do bem de família (de qualquer valor) e do salário (também de qualquer valor). Isso pode até ser injusto, mas é a atual solução do direito brasileiro. Em interessante artigo, Daniel Assumpção Neves chegou a afirmar a
“necessidade da comunidade jurídica dizer em alto e bom tom que os vetos presidenciais são injustificáveis, não encontrando qualquer razão de ser plausível. É como um grito de revolta contra aqueles que continuam a entender o princípio da dignidade humana de forma absolutamente imprópria. É um desabafo contra o atraso disfarçado de modernidade. É, acima de tudo, uma tentativa de demonstrar que o veto presidencial não pode ser aceito pacificamente, sendo necessário que os operadores e estudiosos do processo civil façam nova pressão nos responsáveis para que as modificações vetadas sejam o mais rápido possível transformas em lei.”. (Texto disponível em http://www.professordanielneves.com.br/artigos/201011151759350.vetospresidenciaveis.pdf).
É verdade que há decisões – absolutamente minoritárias – deferindo a penhora de salários e mesmo do bem de família de elevado valor, mas isso não permite concluir pela correção da tese. É que se o legislador expressamente aprovou tal possibilidade, mas houve veto (mantido, registre-se!), não pode o juiz decidir em sentido contrário. Assim agindo, o juiz se tornaria um justiceiro e não um aplicador do direito.
Registro que atualmente não se nega o caráter criativo da jurisdição. E isso certamente já foi “contado” a vocês pelo Prof. Amaury Nunes. O que se discute, na verdade, é quais são os limites dessa criação judicial do direito e como controlar tal atividade, sem prejuízo da legitimidade do Poder. De qualquer sorte, ao bem da segurança jurídica, o juiz não pode julgar manifestamente contra a lei, a menos que o faça com o propósito de preservar a Constituição Federal, reconhecendo o vício de inconstitucionalidade da lei (controle incidental/difuso). É esse, por exemplo, o entendimento do Desembargador Federal Reis Friede, em recente artigo em que reafirma o dever do juiz de sujeitar-se às leis do país:
Esta é exatamente a prisão e a consequente servidão a que estão vinculados todos os Membros do Poder Judiciário (além de todos os demais cidadãos brasileiros), sem qualquer exceção, em sua missão última e derradeira de, - ao dizer o direito a ser aplicado -, realizar, em última análise, o verdadeiro anseio do jurisdicionado, no sentido de alcançar o que ele mesmo ousou definir como Justo ou, em termos mais amplos, como Justiça. (Friede, Reis. A imperatividade do direito positivo e o poder do juiz na apreciação da medida liminar, disponível em http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/43861).
Então, voltemos às razões da exceção legal que permite a penhora do bem de família pertencente ao fiador na locação. De fora simples e direta: o legislador estabeleceu essa exceção numa tentativa de beneficiar o locatário, facilitando-lhe a garantia. É que se ausente tal previsão, o locatário precisaria de um fiador que fosse proprietário de dois imóveis ou de um imóvel e outros bens relevantes, pois o primeiro imóvel (o bem de família) seria impenhorável e, portanto, a fiança não teria utilidade.
Só pra lembrar, a fiança é uma garantia fidejussória (pessoal) por meio da qual o fiador garante a dívida com seu patrimônio, presente e futuro. Assim, se o único patrimônio for impenhorável, na prática, a fiança não garante a dívida.
Enfim, as razões que impulsionaram o legislador foram boas, mas de boas intenções, todos sabemos, o inferno está cheio.
- A aplicação do dispositivo no Brasil
Outro ponto relevante - embora não seja determinante – é saber como a referida exceção tem sido aplicada pelos tribunais, especialmente após a promulgação da Emenda Constitucional 26/2000. Comparem a redação do caput do art. 6º da Constituição Federal antes e depois da referida emenda:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (redação original)
Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000)
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
Veja-se que “a moradia” somente foi prevista na Constituição como um direito social com a EC 26/2000. E a emenda é posterior à Lei do Inquilinato, o que provocou o debate jurisprudencial sobre a revogação, ou não, do inciso VII do art. 3º da referida lei.
O fato é que, apesar da nova redação do art. 6º, o STF e os demais tribunais do país mantiveram o entendimento anterior, pela constitucionalidade do dispositivo. Ilustrativamente, veja-se o seguinte julgado do STF:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. DIREITO À MORADIA. PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR DE CONTRATO DE LOCAÇÃO. LEGITIMIDADE. CONSTITUIÇÃO, ART. 6º (REDAÇÃO DADA PELA EC 26/2000). LEI 8.009/90, ART. 3º, VII. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. SÚMULA 283 DO STF. COMPETÊNCIA DO RELATOR (CPC, ART. 557, CAPUT, E RISTF, ART. 21, § 1º). TRANSFORMAÇÃO DE LOCAÇÃO EM COMODATO. CONTROVÉRSIA INFRACONSTITUCIONAL. SÚMULA 279 DO STF. I - O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 407.688/SP, considerou ser legítima a penhora do bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, ao entendimento de que o art. 3º, VII, da Lei 8.009/90 não viola o disposto no art. 6º da CF/88 (redação dada pela EC 26/2000). Precedentes. (...) (RE 608558 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 01/06/2010, DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-08 PP-01897).
Ademais, recentemente, o STF reconheceu que a matéria tem repercussão geral e ratificou o entendimento da Corte. Vejam a ementa:
CONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. RATIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA FIRMADA POR ESTA SUPREMA CORTE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
(RE 612360 RG, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, julgado em 13/08/2010, DJe-164 DIVULG 02-09-2010 PUBLIC 03-09-2010 EMENT VOL-02413-05 PP-00981 LEXSTF v. 32, n. 381, 2010, p. 294-300 ).
Nesse contexto, notadamente pelo instituto da repercussão geral, pode-se afirmar com tranquilidade que a matéria está pacificada na jurisprudência brasileira, pela constitucionalidade da penhora do único imóvel – bem de família – do fiador na locação. Repito: isso não quer dizer que está correto ou que deva permanecer assim. Apenas faço aqui uma constatação!
- O benefício de ordem
Finalmente, o ponto que interessa especialmente à matéria: o benefício de ordem e seu “diálogo” com a lei do inquilinato. E a questão é mesmo simples...
É certo que o único imóvel do fiador pode ser penhorado (posição tranquila na jurisprudência), mas isso não quer dizer que o fiador esteja alijado do direito ao benefício de ordem. As normas “dialogam” e harmonizam-se sem qualquer problema: o inciso VII do art. 3º da Lei 8.241/90 exclui do fiador na locação a impenhorabilidade do bem de família, apenas isso. Continua o fiador com o direito de alegar o benefício de ordem, previsto no art. 827 do Código Civil e aplicável a qualquer fiança, salvo as exceções previstas na lei.
Uma observação final, para aquecer o debate: poderia o fiador, que perdeu o seu imóvel residencial (bem de família), excutido que foi pelo credor/locador, executar o locatário/afiançado e, fazendo-o, alcançar o único bem imóvel (bem de família) pertencente ao locatário? A resposta é um sonoro NÃO! É que na execução promovida pelo fiador – que já pagou a dívida e, portanto, sub-rogou-se no crédito – terá o executado (devedor/locatário/afiançado) a proteção do bem de família, pois não há lei no país que lhe afaste tal direito.
Duvidam? Então vejam essa decisão do STJ:
“O fiador que paga integralmente a dívida a qual se obrigou, fica sub-rogado nos direitos e garantias do locador-credor. Entretanto, não há como estender-lhe o privilégio da penhorabilidade do bem de família em relação ao locatário-afiançado, taxativamente previsto no disposto mencionado, visto que nem mesmo o locador o dispunha.” (STJ-5° T. REsp 255.663-SP, rel. Min. Edson Vidgal, j. 29.6.00).
Enfim, espero que as considerações acima contribuam para o entendimento desse interessante tema!
Abraço
Jamyl